Cristina Carrasco
O ingresso massivo das mulheres (de classe média) no ensino superior e no trabalho assalariado junto com o ressurgir político e ideológico do movimento feminista provocaram nas últimas décadas certas mudanças de perspectiva nas diferentes disciplinas. Trata-se de mudanças profundas que não só pretendem “agregar” o estudo das mulheres nas pesquisas, mas sobretudo, é uma tentativa de resolvê-los. A introdução da categoria “gênero” revela a insuficiência dos corpos teóricos das ciências sociais, pela sua incapacidade de oferecer –não uma explicação- mas um tratamento adequado à desigualdade social entre mulheres e homens. Estes novos enfoques pretendem denunciar o viés androcêntrico que subjaze o “saber científico”: a eleição dos temas de pesquisa, a forma de aproximação, a interpretação de dados e resultados, etc., acontecem sob uma perspectiva que pretende universalizar normas e valores que correspondem a uma cultura construída pelo domínio masculino. O resultado até agora é um avanço epistemológico importante: por um lado, se constroem novas parcelas de conhecimento e, por outra, se redefinem categorias e conceitos partindo da própria experiência das mulheres. No entanto, pouco foi feito na transformação real das disciplinas. Assim, os enfoques novos e os tradicionais decorrem por vias paralelas sem se cruzar.
A economia – apesar de ser a disciplina social menos sensível às rupturas conceituais - não é indiferente a este processo de crítica teórica e metodológica. Já no século XIX – e coincidindo com a primeira onda do feminismo- diversas autoras escrevem sobre o direito das mulheres a ter um emprego e denunciam as desigualdades nas condições trabalhistas e salariais entre os sexos. Desde então e particularmente desde os anos sessenta, os escritos econômicos que estudam a problemática das mulheres aumentaram sensivelmente. Às razões já foram assinaladas anteriormente: o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e às universidades e o desenvolvimento do pensamento feminista que pressiona as diversas disciplinas.
A chamada economia feminista se inicia nestas datas com uma crítica aos paradigmas neoclássico e marxista, pela maneira de analisar a situação sócio econômica das mulheres. A economia neoclássica é acusada de racionalizar os papéis tradicionais dos sexos – tanto na família como no mercado de trabalho - justificar e reforçar desta maneira o status quo existente (Humphries, 1995, p55). O marxismo é criticado pelas noções -supostamente neutras ao gênero - proletariado, exploração, produção e reprodução e a suposta convergência natural de interesses econômicos entre homens e mulheres da classe trabalhadora. Desta maneira está tentando-se fazer visível uma relação dialética entre gênero e classe. Em definitiva,
(...) apesar de que as premissas e os métodos das tradições radical e neoclássica são muito diferentes, as economistas feministas (...) tem mostrado que historicamente estas escolas têm tratado a divisão por sexo do trabalho na família e na sociedade como se estivessem biologicamente determinada (Kuiper e Sap, 1995, p.4).
Além da crítica metodológica e epistemológica às tradições existentes, a temática estudada nas últimas três décadas é muito ampla, embora cada época esteja marcada pela discussão de determinadas questões resultado da situação sóciopolítica e do avanço intelectual. Dentre os temas analisados destacam-se, o trabalho doméstico, os diferentes aspectos da participação e discriminação das mulheres no trabalho, as políticas econômicas e seus efeitos diferençados por sexo, os problemas de gênero e desenvolvimento, a invisibilidade das mulheres nos modelos macroeconômicos e o desenvolvimento de novos enfoques que permitam a análise global da sociedade. Basicamente é questionado o viés androcêntrico da economia, que se evidencia nas representações abstratas do mundo usadas habitualmente pelos pesquisadores, onde se omite e exclui às mulheres e à atividade fundamental que estas realizam, não conseguindo assim analisar suas restrições e situações especificas. “A economia tem desenvolvido uma metodologia que não consegue ‘ver’ o comportamento econômico das mulheres” (Pujol, 1992, p.3).
A chamada economia feminista dificilmente pode ser considerada um conjunto monolítico. Na discussão e elaboração teórica participam pesquisadoras(es) procedentes de diversas escolas de economia – neoclássica, marxista, funcionalista - assim com de diversas tradições do feminismo – liberal, radical, socialista -. Além disso, é quase que habitual desde a perspectiva feminista, - salvo quando se discutem aspectos metodológicos - a interdisciplinaridade , especialmente na análises de fenômenos sociais, mesmo que seja difícil separar o pensamento econômico de outras disciplinas próximas – sociologia, antropologia, história -. Ao longo dos anos oitenta se desenvolve uma convergência entre as diferentes vertentes das feministas economistas. Isto responde a razões mais genéricas, tanto de ordem político como acadêmico. Por uma parte, existe a necessidade de construir uma frente comum na luta política e o trabalho intelectual para enfrentar à direita ideológica e política emergente. Por outra parte, a corrente do pós-modernismo tem um impacto na teoria feminista: a crítica às categorias tradicionais abre a possibilidade a novas teorizações e pesquisas (Beneria, 1995). Na economia, o poder analítico da categoria gênero junto à crítica do tratamento teórico sobre a mulher, estabelece as bases para uma construção teórica feminista (Folbre e Hartmann, 1988; Nelson, 1992; Woolley, 1993).
Um fato importante para a economia feminista aconteceu em 1990. Nesta data, a Conferência Anual da American Economic Association, inclui pela primeira vez um painel relacionado especificamente com as perspectivas feministas na economia, os artigos são publicados posteriormente em Ferber e Nelson (1993). Este texto constitui o primeiro que questiona as hipóteses da teoria econômica desde uma perspectiva feminista . O processo se consolida com a criação da International Association For Feminist Economics (IAFFE) nos Estados Unidos, espaço de debate das distintas correntes de economistas feministas que publica a partir de 1995 a Feminist Economics, primeira revista desta natureza.
Também em 1993 acontece em Amsterdã a primeira Conferencia “Out of the Margin. Feminist Perspectives on Economic Theory”. Os debates confirmam os limites das aproximações tradicionais e manifestam que a economia feminista não é só uma tentativa de ampliar os métodos e teorias existentes para incluir as mulheres, senão uma coisa mais profunda: procurar uma mudança radical na análise econômica que posa transformar a própria disciplina modificando alguns de seus pressupostos básicos – normalmente androcêntrico - e permita construir uma economia que integre e análise tanto a realidade das mulheres como aquela dos homens (Beneria, 1995).
Nas seguintes páginas vamos relatar algumas das problemáticas mais significativas e que são objeto de revisão e reelaboração. Nem a temática, nem a bibliografia referênciada pretende ser exaustiva. A produção teórica das últimas décadas é tão ampla que estudá-la completamente seria quase que impossível. O objetivo é oferecer uma pauta orientadora do estado da questão para as pessoas interessadas, não especialistas no tema.
Começamos com a crítica ao viés androcêntrico no pensamento econômico. Os seguintes capítulos se dedicam à discussão de questões relacionadas como o trabalho das mulheres nas suas diversas vertentes: o “debate sobre o trabalho doméstico”, a discussão do patriarcado, o conceito de trabalho e a valoração do trabalho familiar e o mercado de trabalho e as relações de gênero. Logo depois discutiremos a falsa neutralidade dos modelos e políticas macroeconômicas e finalmente o debate sobre os aspectos metodológicos da disciplina e a proposta de novas perspectivas de análises.
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