22 fevereiro, 2011
Ponte Billinghurst e a Interoceánica: ponto sem retorno para o genocídio e a devastação da Amazônia
Por Pablo Cingolani / Bolpress.com
“Desenvolvimento” e Amazônia já não são mais que um oxímoron. À medida que avançam as políticas desenvolvimentistas e neo-extrativistas dos governos da região, avança a destruição da natureza e o etnocídio genocida dos povos originários que a habitam. A encruzilhada é mais desafiadora do que nunca: ou se detém a penetração capitalista ou desaparecerão os povos indígenas e as florestas.
Ou se detém a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Sul-Americana que estimulam de forma decidida o Estado brasileiro e os demais governos da região, os bancos multilaterais e as transnacionais, ou a selva e os índios serão imagens e recordações do museu de horrores da violenta conquista da última fronteira interna continental para abri-la ao saque de seus recursos naturais, a transformação irreversível de seu ecossistema e a extinção física de suas culturas.
O Brasil se converteu em uma das dez maiores economias do mundo e representa mais da metade da atividade econômica sul-americana. O PIB brasileiro corresponde a 44% do PIB da América do Sul. O novo monstro do capitalismo se fixou uma meta que coloca a Amazônia no centro do cenário mundial, convertendo-a no mais importante espaço estratégico deste ainda flamante século XXI: abrir a Amazônia à exploração massiva de seus recursos naturais, completando seu domínio territorial e sua inexorável marcha para o oeste.
O pré-requisito complementar para seu cumprimento era romper o obstáculo geográfico que as grandes florestas e os grandes rios representaram historicamente como freio à penetração do transporte, das máquinas, dos mercados e das grandes corporações. Daí que a abertura do território amazônico e sua vinculação física com os portos de exportação dos dois oceanos mais importantes da terra, o Atlântico e o Pacífico, e através deles, com o resto do mundo globalizado, é o objetivo principal da chamada Iniciativa para a Integração da Infreaestrutura Sul-Americana, mais conhecida como IIRSA, que se pôs em marcha em agosto do ano 2000 em Brasília. E apenas dez anos e alguns meses depois, o IIRSA está a ponto de consegui-lo.
Quando se terminarem as obras de construção da ponte Bilinghurst sobre o rio Madre de Dios, que unirá a cidade de Puerto Maldonado com o casario de El Triunfo, ambos no Departamento de Madre de Dios, no extremo sul-oriental da República do Peru, e com isso se culmine a construção do chamado Corredor Viário Interoceânico Sul Peru-Brasil, a história sul-americana mudará para sempre.
Acima de tudo, se terá conseguido cumprir o desejo imperial de dois séculos de unir os dois oceanos pelo coração do continente que segue sendo o que entesoura os mais vastos recursos de água, energia, biodiversidade e terras do planeta [1]. Logo, se concretizará o acordo secreto de quarenta anos atrás entre o então presidente norteamericano Richard Nixon, e o então ditador militar brasileiro Emílio Garrastazu Médici, de construir uma estrada interoceânica [2]. Finalmente, o mais vasto plano de recolonização capitalista da América do Sul, de assalto a seus recursos naturais e a serviço das transnacionais e o empresariado poderá exibir uma sonhada e primeira grande vitória sobre a geografia, a natureza e os povos, inaugurando pela primeira vez na história uma estrada de mais de 5.000 quilômetros com pontes que agüentam até 60 toneladas de peso e que permitirão o fluxo permanente de investimentos e mercadorias de um oceano a outro, e a conseqüente abertura irreversível do espaço amazônico ao mercado mundial.
A inauguração da ponte Bilinghurst e da bioceânica está prevista entre janeiro e abril de 2011, antes de que se levem a cabo as eleições presidenciais no Peru, marcadas para 10 de abril e onde Alan García, o grande impulsor das obras do IIRSA em seu país, se despede de sua segunda gestão. Seguramente concorrerão ao ato de inauguração a recém eleita presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, e o atual presidente da Bolívia, Evo Morales, que acaba de assinar com García uma ata para a construção de um trecho de estradas de 80 quilômetros que una de maneira direta a Bolívia com a interoceânica, que por centenas de quilômetros corre quase paralela à fronteira boliviana. O trecho Nareuda-Extrema-San Lorenzo, acordado pelos presidentes, é também parte dos planos do IIRSA [3].
O que acontecerá depois que se inaugure a ponte pênsil mais longa do Peru, de 722 metros de extensão? É importante tratar de pôr esta obra no contexto histórico e entender a magnitude dos trágicos impactos que acarretará.
Até agora, a navegação dos rios era a forma mais efetiva de penetração na selva. Quando se produziu o fenômeno do auge da extração do látex entre os anos 1870 e 1914, a primeira incorporação forçosa da Amazônia continental ao mercado mundial, os rios se converteram na via de ingresso de milhares e milhares de pessoas estranhas à selva que causaram um genocídio entre os povos indígenas que até hoje segue sendo ocultado e silenciado.
As atuais fronteiras entre Brasil, Peru e Bolívia nos territórios atravessados agora pela interoceânica e sua zona de influência nascem dessa invasão violenta que escravizou povos inteiros para obrigá-los a trabalhar na coleta do látex e que levou à desaparição física de muitos deles. Alguns se refugiaram monte adentro, nas cabeceiras dos rios onde estes já não eram navegáveis, e assim puderam evitar o extermínio. São os que atualmente conhecemos como “povos indígenas isolados ou povos indígenas isolados voluntariamente”.
Um século depois desta hecatombe étnica, muitos desses povos que elegeram a liberdade ao aniquilamento, foram forçados através de missões religiosas a sair de seu isolamento e se encontram na situação chamada de “contato inicial” com a sociedade nacional hegemônica de seus países, situação de extrema vulnerabilidade para a sobrevivência de seu modo de vida e de sua cultura, ameaçados pela lenta desaparição da mesma, tragédia conhecida como etnocídio.
A abertura da interoceánica e a inauguração da ponte Bilinghurst deixaram para trás a história fluvial da Amazônia: os rios já não serão a única maneira de penetrar o território, e menos um obstáculo para essa penetração. A primeira ponte sobre um grande rio da Amazônia Sul é o símbolo perfeito dessa globalização vigente, e da escala planetária das relações econômicas, políticas e sociais impostas no mundo.
Hoje, uma interconexão como a que provocará a ponte – por mais longínquas e abandonadas que pareçam as regiões onde esta influenciará desde o ponto de vista nacional – é possível para essa nova ordem mundial, baseada no desenvolvimento das forças produtivas em escala global e onde, por isso mesmo, as agressões e as ameaças se tornaram planetárias. A ponte, insistimos, é o símbolo perfeito do IIRSA que é o outro nome da globalização na América do Sul.
Quando estiver disponível para a utilização, calcula-se que uma média de 1500 caminhões de alta tonelagem passarão ali diariamente. Isto não será, senão, o impacto mais visível que terá a interconexão bioceânica na Amazônia. Por trás dos caminhões virão mais madeireiras ilegais, mais mineiros desesperados pelo ouro, mais colonização desordenada, mais narcotraficantes. E o que é pior: virão as empresas nacionais e transnacionais mineiras, petroleiras e agroexportadoras de mãos dadas com os governos para explorar até o último rincão da selva, agora aberta já não somente pelos rios, senão pelos caminhos do IIRSA, como o prova este primeiro corredor interoceânico.
Daí que sua inauguração não fará outra coisa do que acelerar os processos de genocídio e etnocídio históricos contra os povos indígenas, provocando a desaparição definitiva dos últimos povos indígenas isolados na selva amazônica ao ser invadidas suas terras como conseqüência da nova dinâmica de agressão que a estrada trará consigo; por sua vez, as comunidades indígenas e nativas já estabelecidas, também sofrerão o mesmo despojo: se radicalizará a invasão de seus territórios e eles se verão forçados a emigrar às cidades para proteger-se ou resistir a esta ofensiva terrorista.
Se hoje a situação atual das comunidades indígenas se caracteriza pelos conflitos permanentes pela defesa de seus territórios, o que acontecerá quando as empresas já não tiverem barreiras para poder ingressar onde desejarem, aí onde haja um recursos natural a ser explorado? Como dizíamos no começo, se não se detém a penetração capitalista, os povos indígenas desaparecerão, desaparecerão suas comunidades, seus modos de vida, seus costumes, suas tradições, e uma vez desaparecidos os povos que defendiam a selva – porque era essencial para sua sobrevivência e sua cultura – desaparecerá também a própria selva, queimada, desmatada e arrasada para a ocupação definitiva de seu espaço para os negócios agrícolas e pecuários extensivos – como já acontece nos estados brasileiros do Acre e de Rondônia – e a construção de novas cidades.
Lamentavelmente, com a ponte Bilinghurst, estamos chegando a um ponto sem retorno da trágica história sul-americana, especialmente da Amazônia. A condenação a estes planos de penetração e de abertura das florestas, com o vergonhoso custo humanos que isso trará consigo, deveria ser unânime. Não obstante, há que dizê-lo: por mais que o impacto, a agressão e a ameaça sejam globais, hoje poucos sabem, inclusive na América do Sul, o que está acontecendo na Amazônia Sul, e muito menos o que pode acontecer. Haveria que interromper o genocídio, haveria que interromper a devastação, mas estamos longe de poder fazê-lo. O mundo sensível deveria pronunciar-se e atuar. E nós, desde aqui, mobilizar-nos. Mais do que nunca.
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Notas: [1] Os Estados Unidos da América do Norte forçaram o Brasil a declarar, em 1866, a libre navegação pelo Amazonas. O Peru abriu seus rios dois anos depois. A libre navegação não só propiciou o comercio, como também a biopirataria, como o provou Henry Wickham roubando 70.000 sementes de seringueiras em 1876. Com o tempo, isso acabou com a produção seringueira amazônica.
[2] Ver Roberto Ochoa: Nixon y la Interoceánica. La República, Lima, 21 de agosto de 2009
[3] Ver Declaración de Ilo, assinada em 19 de outubro de 2010, entre Alan García Pérez e Evo Morales Ayma. Ali se expressa “A decisão de iniciar no curso do primeiro semestre do ano 2011 as gestões necessárias para o financiamento e construção do asfaltado dos 80 quilômetros da estrada Nareuda – Extrema – San Lorenzo , o que permitirá vincular os Departamentos de Pando e Beni na Bolívia com a Região de Madre de Dios e o porto de Ilo no Oceano Pacífico, constituindo-se no novo eixo de interconexão com a estrada interoceânica do Sul”. Ver: http://portal.andina.com.pe/EDPEspeciales/especiales/2010/octubre/DECLARACION_ILO_2010.pdf
Río Abajo, Bolivia, 21/11/10
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